Pneus cantaram. Os dois garotos viram a ambulância passando em alta velocidade, seguida de perto por um sedã que corria mais ainda. Cinco segundos depois ouviram a freada, buzinas e o barulho da batida. Correram junto com a multidão de curiosos até chegar no local do acidente, viram sangue se espalhar, mas não por causa da batida.
– Diogo… aquele cara espancando o motorista da ambulância, não é o professor Rodrigo?
– Não pode ser! O Rodrigo não machuca nem um mosquito, ele deixou o Ademir colar na prova e rir da cara dele e não disse nada…
– Olha lá, é ele sim, vai matar o cara! O que está acontecendo?
***
Naquela manhã, o professor Rodrigo aguardava em sua mesa enquanto os alunos terminavam as provas. Em sua mão, segurava um bilhete que havia lido dez vezes, mas ainda não se conformava.
“Professor Rodrigo, tivemos reclamações relacionadas ao aluno Ademir Rocha, que relatou sofrer discriminação e abusos em suas aulas. Como o senhor sabe, ele é filho de nosso Governador e sua permanência em nossa escola nos traz grandes benefícios, sua influência não pode ser substituída tão facilmente como os funcionários de nosso corpo docente. O rapaz tem boas notas em todas as disciplinas, porém, algo com a vossa didática o impede de tirar boas notas na disciplina de Língua Portuguesa. Sugerimos que reveja suas práticas para que esse equívoco seja corrigido.
Atenciosamente, a direção.”
Ele analisou o texto: sabia que “benefícios” significava desvio de dinheiro e “algo com a sua didática” associado com o uso da palavra “substituída” queria dizer que ele devia passar a mão na cabeça do moleque ou perderia o emprego. Já a palavra “abusos”…
a.bu.so
sm (lat abusu) 1 Uso errado, excessivo ou injusto.
Se era injusto pedir que largasse o celular e prestasse atenção na aula, então ele era culpado.
Ademir se levantou, cutucou o colega e, com um sorriso no rosto, entregou a prova em branco ao professor, dizendo:
– Quero meu dez, ein! – e saíram rindo da sala.
Rodrigo sabia que ele estava falando sério, e o que poderia acontecer se não desse a nota. Ficou quieto e foi para casa.
“Preciso de uma cerveja” – Pensou.
Chegou em casa e viu algo estranho, seu melhor amigo Peres parado em frente à porta. O amigo o cumprimentou de modo envergonhado, sem olha-lo nos olhos. Quando abriu a porta viu malas recém feitas e ouviu passos agitados. Eram de sua esposa.
– Você chegou cedo!
– Cheguei na hora, onde vai?
– Embora – e em meio a lágrimas e um choro sufocado ela disse o quanto estava infeliz e o quanto o casamento com ele era uma prisão. Havia encontrado refúgio nos braços de Peres e ia embora com ele.
Rodrigo não soube o que responder. Em sua vida a dois ele trabalhava e ela gastava com roupas, ele fazia surpresas e ela nunca queria ir a lugar nenhum. Ela não fazia nada em casa, ele limpava e cozinhava, ela chegava do salão de beleza cansada demais para conversar.
– Adeus amigo – disse Peres, que o conhecia desde a quarta série, enquanto carregava as malas de sua esposa até o carro, e saíam de sua vida.
a.mi.go
adj (lat amicu) 1 Que tem gosto por alguma coisa; apreciador.
Era um apreciador de esposas, isso sim. Rodrigo precisava mais ainda de uma cerveja.
Foi até a cozinha, abriu a geladeira. Estava vazia.
Sobre a pia havia garrafas vazias, algumas com marcas de batom. Foi até o quarto, a cama estava desarrumada, uma calcinha vermelha jogada no chão. Precisava sair, comprar mais cerveja, estar em outro lugar.
“Não acredito que beberam minha cerveja importada” Pensou indignado no caminho até o posto. Não queria pensar em nada do que estava acontecendo em sua vida, só queria beber e esvaziar a mente. Não costumava beber muito, só sentia essa necessidade quando estava muito estressado, mas isso estava ficando mais frequente em sua vida.
Apenas um posto na cidade vendia a cerveja importada de que tanto gostava, e era dela que ele estava precisando.