Branca de Neve (O Cemitério das Fadas – Parte 1)

Sirenes dos mais variados tipos soaram ao mesmo tempo: polícia, bombeiros, ambulância, pessoas gritando e uma turbina de avião. Os sons se misturaram e ficaram cada vez mais altos, até que o Detetive Alves abriu um dos olhos, enxergando embaçado o celular que martelava a música da operadora direto para o interior do seu cérebro. “Que falta de noção, ligar para os outros de madrugada, e justo na minha folga” – pensou.

– Felipe! – Berrou uma voz do outro lado da linha – já são dez e meia da manhã, onde você se meteu? Temos uma emergência, e preciso de você aqui imediatamente.

– Hoje é minha folga, delegado – balbuciou roucamente.

– Sua folga foi ontem! Onde está sua cabeça? Andou bebendo de novo? É bom aparecer aqui logo, e sóbrio, a coisa é muito séria.

Felipe desligou o celular e deixou a cabeça cair no travesseiro, grunhindo por causa da dor.

Pouco tempo depois, o detetive chegava na cena do crime, com cabelos desgrenhados, barba sem fazer e olheiras profundas. Carregava um enorme copo térmico cheio de café expresso, que ele bebia como se fosse água. O delegado Martins o aguardava ao lado de uma senhora baixa, que vestia roupas tão vibrantes quanto sua maquiagem.

– Tem certeza disso? – Sussurrou a mulher para o delegado, olhando incrédula para a figura que se arrastava em sua direção.

– Acredite em mim, ele é a pessoa ideal para o caso – a resposta veio com um sorriso malicioso. Então se voltou para Felipe – Detetive Alves, esta é a Madame Laila…

– Eu sei muito bem quem você é, todo mundo sabe. O que a mulher mais rica do estado está fazendo em um bairro pobre como esse?

– Bianca era minha funcionária – respondeu a mulher numa voz serena, porém decidida – ela se afastou quando ficou doente, e vim com minha equipe aqui hoje para lhe oferecer assistência e um plano de saúde…

– Não se esqueceu de trazer as câmeras, é lógico – alguns passos adiante, uma equipe de filmagem desmontava e guardava seu equipamento em uma van branca.

Laila franziu a testa por um momento, mas retomou sua voz tranquila:

– Enfim, fui eu quem a encontrou e chamou a polícia, posso fazer um depoimento completo se você…

– Por enquanto eu já ouvi demais, sua voz está ecoando na minha cabeça – ele massageava as têmporas com uma das mãos – vamos examinar logo a defunta.

– Não há defunta – o delegado se adiantou – felizmente a garota sobreviveu e está a caminho do hospital, mas ainda em estado grave.

– E o que você tem pra mim?

– A vítima ligou para a polícia no meio da noite há alguns dias, disse que alguém a estava ameaçando e tentando invadir sua casa. Mandamos uma viatura, que fez a ronda, mas não encontrou nada de errado. Hoje a garota foi encontrada em coma.

A cozinha da casa de Bianca era pequena, mas bem mobilhada. Algumas poucas coisas estavam fora do lugar, uma banqueta tombada no chão e alguns cacos denunciavam onde a jovem havia caído. Bem à frente do local, uma mulher de olhar esperto, vestindo o uniforme da polícia civil, aguardava ansiosamente a entrada do delegado e do investigador, segurando um saquinho plástico contendo algo parecido com uma bola vermelha. Assim que viu os dois, disparou a falar:

– Que bom que o senhor está aqui, Delegado Gomes. Boa tarde, Investigador Alves. Este caso está ficando bem interessante, encontramos várias pistas do que pode ter acontecido, mas tudo está ligado a isto aqui – estendeu o braço, exibindo o plástico, e Felipe se aproximou para observar.

– Uma maçã?

– Sim, está mordida, veja. Ela havia acabado de comer um pedaço da maçã e caiu dura no chão. Tiramos uma amostra para o laboratório, mas minha principal suspeita é de que ela tenha sido envenenada. Não há sinais de arrombamento, de roubo, luta, nada disso…

– Nenhum sinal dos sete anões por aí, também?

– Como assim?

– Deixa pra lá – o detetive riu para si mesmo.

– Como não havia nenhum sinal de uso de força – concluiu a policial – suspeitamos de que alguém envenenou a fruta e ela comeu sem saber, mas ainda não descartamos a intoxicação alimentar comum também…

– Delegado – Felipe interrompeu mais uma vez – a sua equipe é muito incompetente.

– Mas que absurdo! – O delegado se irritou com o comentário – Seguimos todos os procedimentos. A Adriana aqui, está fazendo um excelente trabalho, liderando o caso que deveria ser seu, enquanto você estava dormindo até mais tarde, de ressaca, sem nem saber que dia é hoje. Já resgataram a moça, tiraram amostras de digitais da casa toda e tomaram depoimento dos vizinhos…

– Tudo muito técnico, é claro, mas ninguém olhou a porta da geladeira?

Preso com um íman, na porta da geladeira, havia um papel branco dobrado ao meio. Felipe puxou o papel, desdobrou e leu a seguinte mensagem: “Encontre o príncipe encantado, ele é o único que poderá salvar a Branca de Neve, mas não será com um beijo. – Assinado: Fada Madrinha”.

Logo abaixo da assinatura havia uma mancha vermelha, mostrando, de maneira bem nítida, uma impressão digital estampada com sangue.

– Sério, Adriana? Procurou digitais na casa inteira, mas não achou o bilhete que o assassino colou na geladeira?

A moça corou.

***

A análise das amostras demorou duas horas. No laboratório da polícia civil, Felipe se encontrou com Adriana para saber os resultados. Junto com ele estava uma adolescente de cabelos negros escorridos.

– Olá Investigador Alves, quem é essa bela mocinha com você?

– Essa é a causa e a cura de minhas dores de cabeça: minha filha Rúbia.

– Hoje eu estou servindo de cura – Rúbia estendeu a mão para Adriana, sorrindo – pode ver que já tratei a enxaqueca desse resmungão.

– Ela quer fazer um estágio na delegacia. Sinceramente, trouxe ela pra você ter com quem conversar e me deixar em paz.

– Que amável da sua parte – disse Adriana num tom sarcástico – só não entendo como uma garota tão simpática saiu de um cara tão chato.

– Vamos ao caso – ele fez uma careta –  use poucas palavras, por favor, não quero que minha dor de cabeça volte.

Adriana rolou os olhos e começou a explicação.

– Bianca Alves sofre de doença renal crônica, tem seus altos e baixos, mas seu coma foi encadeado por ciclosporina, um tipo de imunossupressor injetado na maçã, não é tóxico, mas, para as condições dela, acabou causando insuficiência renal. Ela está na UTI do hospital, a situação é desanimadora e ela pode morrer a qualquer momento. A única coisa que pode salva-la seria um transplante.

– Então, de certa forma, ela foi mesmo envenenada. E quanto ao bilhete?

– Encontramos algo surpreendente: ao testar a mancha de sangue no bilhete, descobrimos que se trata de sangue dourado.

– Me pareceu bem vermelho no papel…

– Não é isso, sangue dourado é uma condição muito rara, em que não há reagente positivo ou negativo no sangue, que formaria os tipos sanguíneos padrão, como O positivo, A negativo, etc. esse tipo de sangue é simplesmente nulo. É algo tão raro e precioso, por ser doador universal, que é conhecido como sangue dourado.

– Isso deve facilitar nossas buscas, não?

– Com certeza, é aí que tudo fica mais interessante: há somente duas pessoas na região com esse tipo de sangue, uma delas se chama Bianca Vieira, nossa vítima, que precisa de um doador que também tenha sangue dourado.

– Claro que sim. E a outra?

– Henrique Floriano, o mesmo dono da digital que encontramos no bilhete.

– Nosso príncipe encantado. Me passe o endereço dele. Rúbia – gritou para a menina, que deslizava o dedo pela tela do celular, aparentemente sem prestar atenção à conversa –  você fica no comando aqui e não deixe a Adriana vir atrás de mim.

– Comando? Ela nem é da polícia, eu vou com você – e diz para a menina – leve essa papelada toda para o escrivão, seu estágio começa hoje – então partiu apressada atrás de Felipe, que já havia saído do laboratório em direção ao pátio – Espere por mim!

***

A viatura rodou em silencio, não estavam disfarçados, mas não era necessário fazer alarde. A casa de Henrique era afastada da cidade, mal chegaram à rodovia e encontraram um conjunto de chácaras bem organizado, como um grande condomínio.

– Eu já vim aqui antes – começou Adriana, olhando ansiosa em todas as direções – alugamos uma chácara dessas para a família passar o natal. Parecem ser bem diferentes, mas todas têm as mesmas coisas: churrasqueira, piscina, uma casa bem arejada e muito espaço pra criançada brincar. Você deveria trazer a sua família algum dia. Você tem mais filhos? Sua esposa gosta de churrasco? Eu tentei ser vegana, sabe, tenho pena dos animais, mas desisto toda vez que sinto cheiro de churrasco…

– Minha esposa me trocou pelo meu melhor amigo. Por isso eu vim pra cá – Felipe diz secamente, sem tirar os olhos da estrada – A Rubia sempre vem passar uns dias aqui, mas ainda mora com a mãe. Espero que essa informação seja desconfortável o suficiente pra você parar de falar até encontrarmos o endereço.

Não foi.

– Você é tão chato porque ela te largou? Ou ela te largou por você ser tão chato?

O olhar raivoso de Felipe conseguiu, desta vez, encerrar a conversa. Adriana murchou no assento e encarou a paisagem até o fim da viagem.

O lugar que encontraram tinha tudo que a policial havia descrito. Muitas folhas secas espalhadas e o musgo na piscina indicavam que a chácara não era usada há algum tempo, no entanto, a porta da casa estava entreaberta e havia uma luz fraca vindo de lá. Com revólver em punho, eles entraram e se depararam com uma cena bizarra.

A grande sala principal da casa estava iluminada somente pala luz de velas, espalhadas em todos os cantos, grudadas nos móveis diretamente pela cera derretida. Ao centro, havia uma enorme jaula de bronze e, dentro dela, um homem moribundo usava suas últimas forças para manter os olhos abertos, estremecendo à entrada dos dois policiais.

– Aqui é a polícia – anunciou Adriana – quem estiver aí saia com as mãos para cima.

Nenhum ruído. Os dois entraram, Adriana tentava abrir a jaula enquanto Felipe analisava o local.

– É o Henrique, não é? Está acabadinho, mas é o mesmo loirinho da nossa ficha. Você viu as paredes? – Felipe apontava para dezenas de fotos que formavam um mural nas paredes de madeira, logo atrás da jaula.

– Parece um santuário aqui, que fotos são essas?

– Ou um terreiro de macumba – ele puxou as cortinas das janelas, deixando a luz do sol iluminar a sala. O prisioneiro deu um gemido de dor por causa da claridade. Felipe se aproximou das fotos.

– São mulheres! Que maluquice! – ele fez uma cara de nojo – são várias fotos de mulheres, algumas estão amarradas, outras prezas nessa mesma jaula… parece que são várias jaulas como essa… quase todas elas machucadas e… o que é isso? Fotos de cadáveres…  nosso príncipe abraçado com… ah eu não aguento olhar isso…

Adriana já havia aberto a porta da jaula, Felipe enfiou os braços lá dentro, enraivecido, e puxou o moribundo, apertando-o contra a parede violentamente.

– Onde elas estão? – Gritou. Henrique ainda mal conseguia ficar de olhos abertos, se o detetive tirasse as mãos dele, cairia como um boneco de pano, mas, em sua fúria, o detetive continuou aos berros – Onde estão os corpos? Alguma delas ainda está viva? Me diga!

– Olha isso aqui – com a voz embargada, Adriana trouxe para Felipe três fotos que retirara da parede – são caixas, cada uma com uma jaula, empilhadas em um caminhão, cada uma com uma moça dentro – puxou a segunda foto para cima do monte em suas mãos – esta aqui, vi a foto dela na delegacia, no nosso mural de desaparecidos – puxou a última – e esta, amordaçada, é Bianca Vieira, nossa mulher em coma.

O detetive soltou o prisioneiro, que desabou imediatamente no chão.

– Que absurdo! Como ela conseguiu escapar? E o veneno e… isso aqui… nada disso faz sentido!

Adriana colocou a mão em seu ombro e apontou para um local de destaque na parede lateral, onde um papel em branco dobrado estava pendurado no meio das fotos.

– Olha aquilo. Parece que nossa fada madrinha deixou outra mensagem.

O bilhete retirado da parede dizia: “Nosso príncipe não tem nada de encantado, não é mesmo? Mas ele ainda pode salvar a princesa. Ele só precisa de um empurrãozinho, para o além – Assinado: Fada Madrinha”.

– Sinceramente, eu esperava algo mais poético – comentou Adriana – O que vamos fazer?

– Ele está bem grogue, precisamos leva-lo para ver se conseguimos o testemunho sobre seja lá o que for tudo isso com essas fotos.

– Mas e a Bianca? Ela não vai passar dessa noite, não dá tempo de esperar esse monstro se recuperar para fazer um transplante, ele provavelmente não vai querer doar.

– O que você sugere? Que a gente dê um tiro na cabeça dele e leve os rins pra salvar a Branca de Neve?

– Olhando para essas fotos e o que esse idiota fez, não me parece uma má ideia – Adriana suspirou profundamente – um dos dois vai morrer hoje, qual deles, vai depender do que fizermos.

– Ei, Srta. Conversinha – Felipe a olha diretamente nos olhos – isso aqui é bizarro, eu sei, mas eu não sou um assassino. Minha torcida é pela moça, sempre, mas temos que fazer as coisas do jeito certo, e esse desgraçado aqui ainda pode dar um depoimento que salve várias dessas moças nas paredes, que devem estar sofrendo em algum lugar. Vamos leva-lo preso e chamar a equipe para analisar cada centímetro dessa chácara, uma coisa de cada vez.

– Não é justo – a voz da policial saiu como de uma menina embirrada.

– Quem é que decide o que é justo? O que a gente escolher vai nos seguir para sempre. Vamos focar no nosso trabalho e fazer o melhor que a gente puder.

*** 

No outro dia, na delegacia, Felipe, Adriana e Rúbia estão sentados em volta de uma mesa coberta com fotos e objetos retirados da chácara. Adriana está no telefone.

– Muito obrigada, doutor, fico muito feliz em saber disso. Claro… por favor, nos avise assim que ela melhorar…

Ela desligou o telefone, suspirou aliviada e se voltou aos outros dois.

– O transplante foi um sucesso! Bianca ainda não acordou, mas o médico disse que ela deve melhorar consideravelmente nos próximos dias e em breve poderá depor.

– Fico feliz por ela – comentou o detetive coçando a cabeça – mudou de Branca de Neve para Bela Adormecida, vai ser muito interessante o que ela tem a dizer quando acordar. Mas ainda me parece muito conveniente que o príncipe tenha tido uma parada cardíaca, dentro da ambulância, minutos depois de sair da chácara.

– Você não vai me ver chorar por causa de vagabundo – Adriana não escondia a satisfação – pelo menos não mais, tive um ex namorado que me iludiu uma vez e…

– Tá, tá – interrompeu Felipe, revirando os olhos – vem comigo, vamos conversar de novo com a equipe que estava na ambulância.

Os dois se levantaram e o detetive virou para a filha:

– Rúbia, organize essas fotos e objetos da mesa, separe o que são fotos de vivos e de mortos, tente ver se reconhece alguma das moças do nosso mural de pessoas desaparecidas.

– Pode deixar, pai – a jovem olhava as fotos uma por uma, com uma mistura de assombro e interesse.

– E o mais importante de tudo – a voz dele ficou séria – não conte à sua mãe que você mexeu nessas coisas, ela nunca mais iria deixar você vir me ver.

Rúbia respondeu com uma piscadela.

Assim que os detetives saíram da sala, a porta se abriu e Madame Laila, com suas roupas coloridas e nada discretas, entrou afobada.

– Onde está o Detetive Alves? Preciso falar com ele urgentemente!

– Ele saiu pra pegar alguns depoimentos – respondeu Rúbia intrigada com aquela personagem esvoaçante – se quiser deixar algum recado, eu posso…

– É sobre o caso de Bianca – ela não fez cerimônia para puxar uma cadeira e se sentar na mesa das evidências. Rúbia pensou consigo que aquela sala deveria ser mais reservada, mas parece que a realidade não era tão organizada como nos filmes. Laila continuou:

– O rapaz que morreu, Henrique, era um dos meus funcionários mais antigos. Estou desconfiada de que há alguma coisa oculta acontecendo na…

A mulher se calou de repente e empalideceu como se tivesse visto um fantasma.

– Que… que fotos são essas? – sua voz tremia.

– Escuta, dona – Rubia tentou ser cuidadosa com as palavras – eu não deveria comentar sobre isso com ninguém, acho melhor esperarmos até os responsáveis pela investigação…

Mas Madame Laila não ouvia uma palavra do que Rúbia dizia. Esticou a mão e apanhou uma das fotos, levando-a vagarosamente até a altura dos olhos.

– Esse caminhão onde colocaram as gaiolas… eu reconheço… ele é meu…