A pintura da capela estava gasta e toda lascada, o mato havia crescido ao seu redor e as folhas altas e disformes acariciavam a lateral da construção. No interior da igrejinha, uma única lâmpada tímida trabalhava com dificuldade para iluminar parcialmente o confessionário, deixando o restante do local na completa escuridão. Curiosamente, não havia lá dentro aquela luzinha vermelha, comum nas igrejas católicas, que indica a presença do Santíssimo Sacramento da Eucaristia.
De dentro do confessionário, se ouve a voz de uma moça:
– Obrigado por me atender a essa hora, padre. Sei que essas missas, tão tarde da noite, devem deixá-lo cansado, então tentarei ser breve.
– Nada disso, minha querida – respondeu uma voz masculina do outro lado da separação de madeira, que os impedia de se ver diretamente, a voz era rouca e as palavras pronunciadas pesadamente, como quem acaba de correr uma maratona – só acho que poderíamos conversar na minha casa, ou no salão paroquial, sentados em um bom sofá… talvez bebendo alguma coisa… não precisamos desse confessionário tão medieval.
– Eu prefiro aqui – interveio a moça – sou mais tradicional.
– Vamos ver… – resmungou o padre – seu nome é Jaqueline, não é? Pode começar sua confissão.
Ela aguardou um instante, para que ele fizesse a oração introdutória, mas como não teve retorno, começou a falar:
– Eu vivi minha vida de maneira muito errada por muito tempo, padre. Sempre atrás de festas, bebia muito e fazia muita besteira. Meus amigos até me apelidaram de Jackie Tequila. Me afastei de Deus e de todos que me queriam algum bem, mas… bom, alguns acontecimentos me fizeram repensar bastante minhas ações: Sofri duas tentativas de assassinato nos últimos anos, em uma delas a experiência foi… sobrenatural. Não vou entrar em detalhes, mas resolvi mudar de atitude e voltar para casa e para a Igreja. Cheguei de viagem há poucos dias.
– Fez muito bem, querida, muito bem. Geralmente não recebemos muitos visitantes por aqui.
– Eu sei, padre, e é um dos motivos de eu vir falar com o senhor. Há algo errado com essa comunidade.
O sacerdote fez uma longa pausa e então perguntou:
– E… por que você acha isso?
– Vou explicar, padre: Antes de vir, tentei contato com meus pais e amigos de infância que ainda moram aqui em Pomaré, mas não consegui falar com ninguém, era como se a cidade estivesse isolada do mundo. Resolvi vir direto, mas também não encontrei nenhum ônibus que passasse por aqui, e nas rodoviárias ninguém conseguia explicar o porquê, nem se lembrar de quando a cidade foi tirada das rotas. Peguei o carro e vim o mais depressa possível, passei pela ponte sobre o rio e não encontrei nenhum outro veículo pela estrada até chegar aqui.
– Uma série de coincidências interessantes – disse o padre calmamente – mas são só isso, aposto que encontrou seus pais e amigos bem, não é mesmo?
– Sim, estão bem e alheios a tudo, cheguei a pensar que era só coisa da minha cabeça… mas foi aí que aquele estranho homem com um casaco preto me abordou. Ele estava sujo e o casaco estava todo surrado, parecia ter saído de um filme de terror. Disse que era sacerdote, se chamava.. Monsenhor Fernando. O senhor deve conhecê-lo, não?
O padre se moveu de supetão dentro do confessionário, fazendo a estrutura de madeira chacoalhar por um instante.
– Isso é impossível, minha cara. Impossível. O que esse sujeito queria com você?
– Me alertar, ele disse. Mas não explicou nada, falou para eu fugir da cidade e procurar uma igreja o mais rápido possível, depois sumiu na escuridão da mata como se fosse um fantasma. Como havia esta capela aqui mesmo, resolvi vir me confessar e ter algum direcionamento com o senhor. Vim pensando em tudo que me aconteceu até aqui, e de como tudo parece estar estranhamente conectado, isso me deixou ainda mais assustada. Quem é esse Monsenhor Fernando?
– Ele era o pároco daqui antes de eu chegar. Entreguei para ele a carta de transferência e ele saiu da cidade há algumas semanas, depois voltou transtornado, não falava coisa com coisa, fez uma grande confusão e partiu sem rumo. Se acidentou tentando passar pela ponte, coisa feia, o carro afundou no rio.
– Nossa, e como ele sobreviveu?
– Não sobreviveu, por isso eu disse que é impossível que tenha falado com ele hoje.
Um calafrio desceu pela espinha de Jaqueline, mas logo em seguida seu corpo inteiro estremeceu, pois ouviu o barulho enferrujado da porta da igreja se abrindo. Ela não teve coragem de espiar para fora do confessionário, que era todo fechado, mas escutou passos lentos e pesados se aproximando pelo corredor central.
Pelas gretas da porta de madeira ela viu uma sombra, que ia aumentando aos poucos, vindo em sua direção. A portinha não tinha tranca, Jaqueline segurou o trinco com as mãos, na esperança de conseguir mantê-la fechada, mas sentiu um peso nele: alguém estava segurando do outro lado.
Um solavanco abriu a porta e a garota deu um pulo de medo. Uma mão grande agarrou sua boca, impedindo que gritasse. Os olhos do Monsenhor Fernando estavam sérios, encarando os seus. Ele esticou um dedo da outra mão e encostou nos próprios lábios, em um sinal para que fizesse silêncio.
– Eu te disse para fugir e você corre para as garras do próprio demônio? – sussurrou o homem, puxando-a para fora do confessionário.
Ao dar meia volta, encontram o padre parado em pé atrás deles, era um senhor magro de cabelos brancos, tinha os olhos negros e formava um sorriso ameaçador com seus dentes amarelos.
– Achei que havia me livrado de você – disse o padre sem perder o sorriso.
– Fique atrás de mim – o Monsenhor falou para Jaqueline, colocando seu corpo como barreira entre a moça e o estranho velho – não fale mais com ele.
– Mas ele é o padre da paróquia…
– Essa coisa pode ser tudo, menos padre.
Tirou do bolso do casaco um rosário e uma garrafinha transparente. Apontou o primeiro objeto para o velho enquanto tirava a tampa do segundo com os dentes.
– Você podia ter tido tudo – rosnou o velho, sua boca começou a se contorcer – agora, o que acha que vai acontecer? Acha que vai salvar as almas dessa cidade? Eles já estavam perdidos muito antes de eu chegar aqui.
O Monsenhor aspergia o velho com o líquido da garrafinha e proferia palavras em latim. Com a voz agora carregada de ódio, a criatura não parava de falar:
– Eles gostam das minhas celebrações cheias de festa, acham inovador quando troco o pão e vinho por refrigerante e bolo. Muitos vem se confessar comigo, e o que acontece no particular… ah, eles gostam. Quanto mais afastado dEle, mais felizes eles ficam e mais a capela lota de gente, enquanto suas catedrais só tem uns poucos moribundos dormindo na homilia, aqui eles podem ser o que quiserem ser.
As palavras em latim iam saindo cada vez mais alto, a água benta provocava cortes na pele do velho. Jaqueline assistia tudo assustada, encolhida atrás de um banco próximo, queria sair correndo, mas estava paralisada de medo.
– Você devia ter morrido naquele acidente… e essa vagabunda – apontou para Jaqueline – seria a próxima, eu estava tão perto – a voz não era mais humana – vou arrancar o coração de vocês dois!
Jaqueline colocou a cabeça entre os joelhos, fechou os olhos e começou a recitar todas as orações que conseguia se lembrar. À sua volta, ouvia bancos se arrastando, janelas e portas abrindo e fechando, e palavras em idiomas que não compreendia. De repente, um grito arrepiante e uma pancada forte de algo caindo no chão.
A moça abriu os olhos devagar, tremendo muito, viu o Monsenhor em pé, suado e ofegante, e o corpo do velho padre estendido no chão, distante alguns metros de si.
– Acabou, minha querida… vamos embora… está tudo bem agora.
***
No dia seguinte, Jaqueline e o Monsenhor caminhavam sob o sol. Ele estava agora limpo e bem-vestido, ela, com uma expressão de alívio no rosto. A rua estava cheia de pessoas caminhando e conversando energicamente, pareciam compensar um tempo perdido que elas não conseguiam compreender.
– Eu nunca fui pároco daqui, o anterior sumiu quando o velho chegou. Vim a primeira vez a pedido do Bispo – o Monsenhor explicava – pois tivemos muitas denúncias da comunidade de “missas” distorcidas e completamente fora da liturgia. Parecia uma profanação grave da casa de Deus. A coisa era bem pior do que imaginávamos, tivemos muitos desaparecimentos, a própria cidade ficou de certa forma oculta do mundo e eu mesmo escapei por pouco da morte, somente pela graça de Deus.
– Sinto muito por ter fugido do senhor, obrigado por salvar minha vida. Parece que sou perseguida por esse tipo de acontecimento bizarro.
– Já presenciou algo parecido antes?
– Duas vezes – ela respondeu olhando distante para o horizonte – foram bem diferentes de ontem à noite, mas tão estranhos quanto… sempre no Halloween…